domingo, 8 de fevereiro de 2015

AULA I 05-01-15 (INTRODUÇÃO AOS DIREITOS REAIS)



I. Coisas, Bens e os Direitos Reais 

Na busca pela satisfação de suas necessidades, as pessoas se apropriam de coisas que encontram na natureza, úteis a esse fim[1]. Neste sentido, qualquer coisa poderia atender nossas necessidades, pois dependemos de oxigênio, água e luz solar para sobreviver.

Por isso não interessam aquelas coisas que existem em abundância no planeta e que, a princípio, não podem ser “apreendidas” para a exploração individual. O que importa, para o presente estudo, são aquelas coisas úteis e raras, que podem ser objeto de apropriação, pelas pessoas.

Esta classe específica de coisas, para Silvio Rodrigues, são os bens. Daí que, para o citado autor, coisa é gênero da qual bem é espécie. Este mesmo posicionamento é compartilhado por Carlos Roberto Gonçalves[2].

Em sentido contrário, Orlando Gomes, no que é seguido por Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, afirma exatamente o contrário: “existem bens com ou sem qualquer expressão econômica, enquanto a coisa sempre apresenta economicidade e é inevitavelmente corpórea.”[3]

Em particular, entende-se que razão assiste a Orlando Gomes, pois realmente existem bens que não apresentam conteúdo econômico, como a vida, a liberdade, os direitos de personalidade em geral, assim como existem bens incorpóreos como o direito de crédito e os direitos autorais. Os bens de existência corpórea e dotados de economicidade são as coisas.

Diante de tais conceitos, pode-se afirmar que os direitos reais regulam o poder que as pessoas exercem sobre certos bens, corpóreas (coisas) ou incorpóreas, de conteúdo econômico.

Já diferença entre direito das coisas e direitos reais é somente quanto ao objeto, uma vez que aquele compreende todo o conteúdo dos direitos reais, além da matéria relativa à posse. Nota-se, portanto, maior amplitude do direito das coisas. Prova disso é que o próprio título do Livro III da Parte Especial do Código Civil, que inaugura a matéria, recebe o nome de “Do Direito das Coisas” (art. 1.196 ao 1.510)

Esclareça-se, também, que os Direitos Reais são divididos em dois grandes grupos: os direitos reais na coisa própria (a propriedade) e os direitos reais na coisa alheia (direitos reais limitados), que se subdividem em: direitos reais na coisa alheia de fruição (superfície, servidões, usufruto, uso e habitação); direito real na coisa alheia de aquisição (direito real do promitente comprador) e direito real na coisa alheia de garantia (penhor, hipoteca e anticrese).

II.  Diferença entre Direitos Pessoais (obrigacionais ou de crédito) e Reais


Não é simples a tentativa de distinguir as espécies de direitos patrimoniais. Muito pelo contrário, é eriçada de discussões, como afirma Caio Mario[1]. Os mais céticos refutam a existência de uma precisa separação, como Pietro Pierlingieri. Outros dizem que a diferença é simplesmente da intensidade do vínculo, que é mais forte nos direitos reais.
  
Outros, como Thon e Schlossmann, sustentam que os direitos reais consistem simplesmente em um processo técnico do direito positivo que institui restrições à conduta humana, em benefício de algumas pessoas[2].

Mas mesmo dentre os autores que aceitam uma distinção, existe uma diversidade profunda de opiniões, de modo que se pode afirmar, para efeitos didáticos, que existem duas grandes teorias: a teoria dualista clássica, também chamada de realista ou tradicional e a teoria monista, unitária ou personalista. 
  

1. Teoria Dualista Clássica (Vittorio Polacco, De Page, Orozimbo Nonato, Carlos Roberto Gonçalve)

Para esta teoria, é possível falar em uma relação jurídica de dominação entre pessoas e bens. Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves:

Segundo a concepção clássica, o direito real consiste no poder jurídico, direto e imediato, do titular sobre a coisa, com exclusividade e contra todos. No polo passivo incluem-se os membros da coletividade, pois todos devem abster-se de qualquer atitude que possa turbar o direito do titular. No instante em que alguém viola esse dever, o sujeito passivo, que era indeterminado, torna-se determinado. [...]
O direito pessoal, por sua vez, consiste numa relação jurídica pela qual o sujeito ativo pode exigir do sujeito passivo determinada prestação. Constitui uma relação de pessoa a pessoa e tem, como elementos, o sujeito ativo, o sujeito passivo e a prestação. Os direitos reais têm, por outro lado, como elementos essenciais: o sujeito ativo, a coisa e a relação ou poder do sujeito sobre a coisa, o chamado domínio.[3]

Portanto, os realistas ou dualistas enxergam, nos direitos reais, “uma relação de subordinação da coisa mesma ao sujeito (Vittorio Polacco, De Page, Orosimbo Nonato), vinculando-os à ideia de assenhoreamento sem intermediários, entre a coisa e o titular.[4]

Em resumo, “o direito real caracteriza-se pelo fato de exercer-se diretamente, isto é, mediante a utilização da coisa sem qualquer intermediário. Ao passo que, no direito pessoal, o sujeito ativo não pode ter a utilização da coisa sem a intermediação de um devedor, ou sujeito passivo determinado.[5]

O esquema abaixo retrata a perspectiva da teoria clássica ou dualista:

TEORIA TRADICIONAL OU DUALISTA
Direito Real
Direito Pessoal

POLO ATIVO     OBJETO     Toda a Coletividade
(titular)             coisa               (sujeito passivo)
                                                 Indeterminado

A relação de poder (domínio) se dá diretamente entre o titular e a coisa (Proprietário e coisa, credor hipotecário e imóvel)

O sujeito passivo é indeterminado. No instante em que alguém viola esse dever, o sujeito passivo, que era indeterminado, torna-se determinado.


POLO ATIVO     OBJETO          POLO PASSIVO
(credor)              prestação        (devedor)


A relação é estabelecida entre duas pessoas, sendo que uma delas, o devedor, tem de cumprir uma determinada prestação em favor da outra.
 
Neste sentido, a idéia central da teoria realista é a de que no direito real há um sujeito ativo, mas não há um sujeito passivo. A relação se dá diretamente entre o titular e a coisa. O professor Adriano Stanley apresenta as definições de Silvio Rodrigues[1] e Darcy Bessone[2], que são adeptos desta teoria.

Este último autor chega a afirmar que a diferença fundamental entre os direitos reais e os pessoais é o objeto da relação, pois enquanto nos direitos reais o objeto seria a coisa em si, nos direitos pessoais/obrigacionais o objeto consiste em uma obrigação de dar, fazer ou não fazer alguma coisa.

Porém, como explica Bruno Zampier[3], partindo-se de uma premissa Kantiana, o Direito somente se interessa para relações existentes entre pessoas[4]. Sendo assim, com base em Kant, relações jurídicas somente são estabelecidas entre pessoas.

Em sentido semelhante, o autor Cesar Fiúza esclarece que, a partir desta concepção do filósofo Immanuel Kant (só pode haver relações jurídicas entre pessoas), apresentada na obra “The Science Of Right”, “quatro teorias dissidentes da clássica reúnem-se em grupo que se pode denominar grupo das teorias personalistas”[5].

         Em suma, para a teoria personalista ou monista, encabeçada por notáveis juristas como Planiol, Georges Ripert, Windscheid e Demogue, “[...] não se poderia conceber uma relação jurídica entre a pessoa e a coisa. A relação jurídica é, sempre, entre duas pessoas, entre dois sujeitos, o ativo e o passivo, nunca poderia ser entre uma pessoa e uma coisa, porque esta nunca teria capacidade para estabelecê-la com a pessoa.[6]



2. Teorias Personalistas 

Com efeito, as teorias personalistas têm um ponto em comum na medida em que não admitem a possibilidade da existência de relações jurídicas entre pessoa e coisa. Por conseguinte, a estrutura da relação jurídica de direito real, na concepção personalista, pode ser ilustrada da seguinte maneira:
 

TEORIAS PERSONALISTAS
Direitos Reais


POLO ATIVO                                         OBJETO                                                  POLO PASSIVO
(credor)                                                   BEM                                                        (não titulares)

A estrutura de uma relação jurídica real se compõe de sujeitos, ativo e passivo, titular e não titulares, respectivamente; de objeto, que será um bem; e do vínculo jurídico que liga titular a não-titulares, em virtude do qual surgem direitos reais e obrigações reais.





Apesar do ponto de convergência, as teorias personalistas se diferenciam quando tentam explicar a diferença entre direito real e pessoal. Uma enfatiza que a diferença está no sujeito passivo, outra sustenta que está no objeto ou, como propõe uma terceira corrente, a diferença estaria no próprio vínculo jurídico.

a) Teoria Unitária ou Personalista (Windscheid, Roguin e Planiol)
 
Essa teoria sustenta que não há diferença substancial entre direito obrigacional e o real. O que ocorre é que o sujeito passivo do direito real é universal e a sua prestação é negativa (abstenção).

Assim, para esta teoria “tudo é a mesma coisa, pois tanto os direitos reais quanto os de crédito decorrem de relações obrigacionais entre pessoas. A diferença encontra-se no sujeito passivo, que nos direitos reais é universal, toda a sociedade, todos os não-titulares e, nos direitos de crédito, uma ou várias pessoas determinadas, ou os devedores.[1]

       Essa teoria não está livre de críticas, pois a obrigação passiva universal não é uma obrigação no sentido da palavra, mas sim uma regra de conduta, que existe não apenas para os direitos reais, mas para todos os direitos.[2]

a)   Teoria de Michas e Quéru

Para esta segunda teoria, a diferença entre direitos reais e pessoais está no objeto da relação, pois enquanto o objeto dos direitos reais é um bem, o objeto dos direitos pessoais é uma prestação de dar, fazer ou não fazer.

b)     Teoria de Démogue

Por outro lado, para Démogue não é o sujeito passivo nem o objeto que diferencia os direitos reais e pessoais, mas sim a intensidade do vínculo jurídico que, nos direitos reais, é mais forte que os direitos pessoais.

3.1.1.      Teoria Institucional de Haurion

Por fim, o autor Maurice Haurion apresenta uma tese completamente distinta das anteriores, ao afirmar que os direitos teriam sua fonte na própria instituição social e não nas relações pessoais entre os indivíduos. Para este autor, “a própria coletividade organizada, institucionalizada, criou seus mecanismos jurídicos de defesa dos direitos dos indivíduos sobre suas coisas. Daí surgiram os direitos reais.[1]


[1] FIÚZA, Cesar. Direito Civil. Curso Completo. Editora Del Rey. Belo Horizonte: 2011. p. 831.

[1] “O Direito das Coisas é o conjunto das normas que regulam as relações jurídicas entre os homens, em face às coisas corpóreas, capazes de satisfazer às suas necessidades e suscetíveis de apropriação” (RODRIGUES, Silvio apud STANLEY, Adriano. 2009. p. 2)
[2] O Direito Real consiste no poder jurídico da pessoa sobre a coisa, oponível a terceiros (erga omnes), tal é o conceito formulado pela Escola Clássica (...). Isto significa que, no direito real, há um sujeito ativo, mas não há um sujeito passivo.” (BESSONE, DARCY apud STANLEY, Adriano. 2009. p. 2)
[3] ZAMPIER, Bruno. Notas de aula ministrada em curso virtual oferecido por CEJUS (Centro de Estudos Jurídicos de Salvador). Disponível em:
[4] ZAMBIER, Bruno. Notas de aula.
[5] FIÚZA, Cesar. Direito Civil. Curso Completo. Editora Del Rey. Belo Horizonte: 2011. p. 829-830.
[6] PLANIOL, Marcel apud STANLEY, Adriano. 2009. p. 3

 

[1] PEREIRA, Caio Mário Silva. Instituições de Direito Civil - Vol. IV - Direitos Reais, 22ª edição. Forense, 03/2014. VitalBook file.
[2] Opus Cit.
[3] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil [...]. 2013. p. 27
[4] PEREIRA, Caio Mário Silva. Instituições de Direito Civil - Vol. IV - Direitos Reais, 22ª edição. Forense, 03/2014. VitalBook file.
[5] Opus Cit.




[1] RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Volume 5. 27ª Edição. Saraiva. São Paulo: 2002. p 3
[2] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Direito das Coisas. Volume 5. 8ª edição. Editora Saraiva. São Paulo: 2013. p. 19.
[3] FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson Rosenvald. Direitos Reais. 6ª Edição. Editora Lumen Juris. Rio de Janeiro: 2010. p. 1.

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