I. Coisas, Bens e os Direitos Reais
Na busca pela
satisfação de suas necessidades, as pessoas se apropriam de coisas que
encontram na natureza, úteis a esse fim[1].
Neste sentido, qualquer coisa poderia atender nossas necessidades, pois
dependemos de oxigênio, água e luz solar para sobreviver.
Por isso não
interessam aquelas coisas que existem em abundância no planeta e que, a
princípio, não podem ser “apreendidas” para a exploração individual. O que
importa, para o presente estudo, são aquelas coisas úteis e raras, que podem
ser objeto de apropriação, pelas pessoas.
Esta classe
específica de coisas, para Silvio Rodrigues, são os bens. Daí que, para o
citado autor, coisa é gênero da qual bem é espécie. Este mesmo posicionamento é
compartilhado por Carlos Roberto Gonçalves[2].
Em sentido
contrário, Orlando Gomes, no que é seguido por Cristiano Chaves e Nelson
Rosenvald, afirma exatamente o contrário: “existem bens com ou sem qualquer
expressão econômica, enquanto a coisa sempre apresenta economicidade e é inevitavelmente
corpórea.”[3]
Em particular, entende-se
que razão assiste a Orlando Gomes, pois realmente existem bens que não
apresentam conteúdo econômico, como a vida, a liberdade, os direitos de
personalidade em geral, assim como existem bens incorpóreos como o direito de
crédito e os direitos autorais. Os bens de existência corpórea e dotados de
economicidade são as coisas.
Diante de tais
conceitos, pode-se afirmar que os direitos reais regulam o poder que as
pessoas exercem sobre certos bens, corpóreas (coisas) ou incorpóreas, de
conteúdo econômico.
Já diferença
entre direito das coisas e direitos reais é somente quanto ao objeto, uma vez
que aquele compreende todo o conteúdo dos direitos reais, além da matéria
relativa à posse. Nota-se, portanto, maior amplitude do direito das coisas. Prova
disso é que o próprio título do Livro III da Parte Especial do Código Civil,
que inaugura a matéria, recebe o nome de “Do Direito das Coisas” (art. 1.196 ao
1.510)
Esclareça-se,
também, que os Direitos Reais são divididos em dois grandes grupos: os direitos
reais na coisa própria (a propriedade) e os direitos reais na coisa alheia (direitos reais limitados), que
se subdividem em: direitos reais na coisa alheia de fruição (superfície, servidões, usufruto, uso e
habitação); direito real na coisa alheia de aquisição (direito real do promitente comprador) e direito real na coisa alheia de garantia (penhor, hipoteca
e anticrese).
II. Diferença entre Direitos Pessoais (obrigacionais ou de crédito) e Reais
Não é simples a
tentativa de distinguir as espécies de direitos patrimoniais. Muito pelo
contrário, é eriçada de discussões, como afirma Caio Mario[1].
Os mais céticos refutam a existência de uma precisa separação, como Pietro
Pierlingieri. Outros dizem que a diferença é simplesmente da intensidade do
vínculo, que é mais forte nos direitos reais.
Outros, como
Thon e Schlossmann, sustentam que os direitos reais consistem simplesmente em
um processo técnico do direito positivo que institui restrições à conduta
humana, em benefício de algumas pessoas[2].
Mas mesmo dentre
os autores que aceitam uma distinção, existe uma diversidade profunda de
opiniões, de modo que se pode afirmar, para efeitos didáticos, que existem duas
grandes teorias: a teoria dualista clássica, também chamada de realista ou
tradicional e a teoria monista, unitária ou personalista.
1. Teoria Dualista Clássica (Vittorio Polacco, De Page, Orozimbo Nonato, Carlos Roberto Gonçalve)
Para esta teoria,
é possível falar em uma relação jurídica de dominação entre pessoas e bens. Nas
palavras de Carlos Roberto Gonçalves:
Segundo
a concepção clássica, o direito real consiste no poder jurídico, direto e imediato,
do titular sobre a coisa, com exclusividade e contra todos. No polo passivo
incluem-se os membros da coletividade, pois todos devem abster-se de qualquer
atitude que possa turbar o direito do titular. No instante em que alguém viola
esse dever, o sujeito passivo, que era indeterminado, torna-se determinado.
[...]
O
direito pessoal, por sua vez, consiste numa relação jurídica pela qual o
sujeito ativo pode exigir do sujeito passivo determinada prestação. Constitui
uma relação de pessoa a pessoa e tem, como elementos, o sujeito ativo, o
sujeito passivo e a prestação. Os direitos reais têm, por outro lado, como
elementos essenciais: o sujeito ativo, a coisa e a relação ou poder do sujeito sobre a coisa, o chamado domínio.[3]
Portanto, os
realistas ou dualistas enxergam, nos direitos reais, “uma relação de
subordinação da coisa mesma ao sujeito (Vittorio Polacco, De Page, Orosimbo
Nonato), vinculando-os à ideia de assenhoreamento sem intermediários, entre a
coisa e o titular.[4]”
Em resumo, “o direito real
caracteriza-se pelo fato de exercer-se diretamente, isto é, mediante a
utilização da coisa sem qualquer intermediário. Ao passo que, no direito pessoal,
o sujeito ativo não pode ter a utilização da coisa sem a intermediação de um
devedor, ou sujeito passivo determinado.[5]”
O esquema abaixo
retrata a perspectiva da teoria clássica ou dualista:
TEORIA TRADICIONAL OU DUALISTA
|
|
Direito Real
|
Direito Pessoal
|
POLO ATIVO OBJETO Toda a Coletividade
(titular) coisa
(sujeito passivo)
Indeterminado
A relação de poder (domínio) se dá
diretamente entre o titular e a coisa (Proprietário e coisa, credor
hipotecário e imóvel)
O sujeito passivo é indeterminado. No
instante em que alguém viola esse dever, o sujeito passivo, que era
indeterminado, torna-se determinado.
|
POLO ATIVO OBJETO POLO PASSIVO
(credor) prestação (devedor)
A relação é estabelecida entre duas
pessoas, sendo que uma delas, o devedor, tem de cumprir uma determinada
prestação em favor da outra.
|
Neste sentido, a
idéia central da teoria realista é a de que no direito real há um sujeito
ativo, mas não há um sujeito passivo. A relação se dá diretamente entre o titular
e a coisa. O professor Adriano Stanley apresenta as definições de Silvio
Rodrigues[1] e
Darcy Bessone[2],
que são adeptos desta teoria.
Este último
autor chega a afirmar que a diferença fundamental entre os direitos reais e os
pessoais é o objeto da relação, pois enquanto nos direitos reais o objeto seria
a coisa em si, nos direitos pessoais/obrigacionais o objeto consiste em uma
obrigação de dar, fazer ou não fazer alguma coisa.
Porém, como
explica Bruno Zampier[3],
partindo-se de uma premissa Kantiana, o Direito somente se interessa para relações existentes entre pessoas[4].
Sendo assim, com base em Kant, relações
jurídicas somente são estabelecidas entre pessoas.
Em sentido
semelhante, o autor Cesar Fiúza esclarece que, a partir desta concepção do
filósofo Immanuel Kant (só pode haver relações jurídicas entre pessoas),
apresentada na obra “The Science Of Right”,
“quatro teorias dissidentes da clássica reúnem-se em grupo que se pode
denominar grupo das teorias personalistas”[5].
2. Teorias Personalistas
Com efeito, as
teorias personalistas têm um ponto em comum na medida em que não admitem a
possibilidade da existência de relações jurídicas entre pessoa e coisa. Por
conseguinte, a estrutura da relação jurídica de direito real, na concepção
personalista, pode ser ilustrada da seguinte maneira:
Apesar do ponto
de convergência, as teorias personalistas se diferenciam quando tentam explicar
a diferença entre direito real e pessoal. Uma enfatiza que a diferença está no
sujeito passivo, outra sustenta que está no objeto ou, como propõe uma terceira
corrente, a diferença estaria no próprio vínculo jurídico.
a) Teoria Unitária ou Personalista (Windscheid, Roguin e Planiol)
Essa teoria
sustenta que não há diferença substancial entre direito obrigacional e o real.
O que ocorre é que o sujeito passivo do direito real é universal e a sua
prestação é negativa (abstenção).
Assim, para esta
teoria “tudo é a mesma coisa, pois tanto os direitos reais quanto os de crédito
decorrem de relações obrigacionais entre pessoas. A diferença encontra-se no
sujeito passivo, que nos direitos reais é universal, toda a sociedade, todos os
não-titulares e, nos direitos de crédito, uma ou várias pessoas determinadas,
ou os devedores.[1]”
a) Teoria de Michas
e Quéru
Para esta
segunda teoria, a diferença entre direitos reais e pessoais está no objeto da
relação, pois enquanto o objeto dos direitos reais é um bem, o objeto dos
direitos pessoais é uma prestação de dar, fazer ou não fazer.
b)
Teoria de
Démogue
Por outro lado,
para Démogue não é o sujeito passivo nem o objeto que diferencia os direitos
reais e pessoais, mas sim a intensidade do vínculo jurídico que, nos direitos
reais, é mais forte que os direitos pessoais.
3.1.1.
Teoria
Institucional de Haurion
Por fim, o autor
Maurice Haurion apresenta uma tese completamente distinta das anteriores, ao
afirmar que os direitos teriam sua fonte na própria instituição social e não
nas relações pessoais entre os indivíduos. Para este autor, “a própria
coletividade organizada, institucionalizada, criou seus mecanismos jurídicos de
defesa dos direitos dos indivíduos sobre suas coisas. Daí surgiram os direitos
reais.[1]”
[1] “O Direito das Coisas é o
conjunto das normas que regulam as relações
jurídicas entre os homens, em face às coisas corpóreas, capazes de satisfazer
às suas necessidades e suscetíveis de apropriação” (RODRIGUES, Silvio apud STANLEY, Adriano. 2009. p. 2)
[2] O Direito Real consiste no poder
jurídico da pessoa sobre a coisa, oponível a terceiros (erga omnes), tal é o
conceito formulado pela Escola Clássica (...). Isto significa que, no direito
real, há um sujeito ativo, mas não há um sujeito passivo.” (BESSONE, DARCY apud STANLEY, Adriano. 2009. p. 2)
[3] ZAMPIER, Bruno. Notas de aula
ministrada em curso virtual oferecido por CEJUS (Centro de Estudos Jurídicos de
Salvador). Disponível em:
[4] ZAMBIER, Bruno. Notas de aula.
[5] FIÚZA, Cesar. Direito Civil.
Curso Completo. Editora Del Rey. Belo Horizonte: 2011. p. 829-830.
[6] PLANIOL, Marcel apud STANLEY, Adriano. 2009. p. 3
[1] PEREIRA, Caio Mário Silva. Instituições de
Direito Civil - Vol. IV - Direitos Reais, 22ª edição. Forense, 03/2014.
VitalBook file.
[2] Opus Cit.
[3] GONÇALVES, Carlos Roberto.
Direito Civil [...]. 2013. p. 27
[4] PEREIRA, Caio Mário Silva. Instituições de
Direito Civil - Vol. IV - Direitos Reais, 22ª edição. Forense, 03/2014.
VitalBook file.
[5] Opus Cit.
[1] RODRIGUES, Silvio. Direito
Civil. Volume 5. 27ª Edição. Saraiva. São Paulo: 2002. p 3
[2] GONÇALVES, Carlos Roberto.
Direito Civil Brasileiro. Direito das Coisas. Volume 5. 8ª edição. Editora
Saraiva. São Paulo: 2013. p. 19.
[3] FARIAS, Cristiano Chaves de.
ROSENVALD, Nelson Rosenvald. Direitos Reais. 6ª Edição. Editora Lumen Juris.
Rio de Janeiro: 2010. p. 1.
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